sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Domingo


Sobre a mesinha, ao lado da pilha de livros, o cinzeiro cheio (...) Recostado na mesa, o corpo, na ponta do corpo a mão, na ponta da mão os dedos avançando até o maço. Vazio. (...)Pela janela aberta, o silêncio do domingo impresso num céu sem cor. Na rua deserta de rumores: domingo. Abre um livro. Os dedos circundam as letras, a unha do indicador amarelada pelo fumo, os dedos acariciam as letras como se fossem carne. Carne desconhecida, sem interesse. Um pouco fria. Letras que não dizem nada, gesto cansado, dedos que voltam à posição anterior mas, inquietos, sobem pela camisa, libertam o último botão da calça. Dedos que entram no peito, passam na pele, alcançando o pescoço, o rosto onde a barba não feita fere de leve. De um apartamento ao lado o vento rouba uma música do rádio e a traz para junto de seus ouvidos. Um samba. Gosto desse samba, pensa distraído, liga o rádio, coincidência, exatinho na mesma estação, dedos agora acompanham o ritmo batendo na colcha, mas o pano não faz som, é preciso bater na mesinha, madeira sambando, a melodia escorrega devagar pelo lado do cinzeiro, se espalha no chão. A voz acompanha baixinho a letra melancólica, amor, flor. (...)
Dezoito anos e um metro e oitenta de solidão. Desliza a mão pela parede, fechando os olhos o verde deixa de ferir, as granulações miúdas do cimento parecem prometer alguma coisa, (...) Abre os olhos e encontra o verde da parede, o azul da colcha: domingo espreitando na moldura da janela. Reduzido a ele mesmo, miseravelmente, sobre a cama. Nem sono tem. Já fechou os olhos, tentou dormir mas tanta preguiça que nem sono tem. Apaga o rádio. /CaioF.

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